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POR UMA ARTE LIBERADORA DA VIDA PARTE 1



POR UMA ARTE LIBERADORA DA VIDA 1



Por Alexandre Gottardo - Graduado em direito pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).



Uma arte que manifeste toda a intensidade dos sentimentos humanos diante dos inevitáveis conflitos que a vida nos coloca. aguerrida. Que sua proclamação seja sensualmente incitadora desse lançar-se por essas zonas de insegurança. Arrebatadora, dilacerante, puro afeto. Que não se destine apenas à audição visual, tátil, olfativo e gustativo: mas multisensorial. À alma. Somente mergulhando de cabeça no caos que o homem conquistaria o domínio de si e estaria, enfim, em plena conciliação com a natureza.

Referidos questionamentos e desbravamentos foram comuns a Wagner e Nietzhche e suas respectivas obras continuam nos desconcertando e forçando-nos a pensar sobre essas infindáveis forças que não param de nos atravessar. Ninguém mais do que eles enfrentaram a questão que assola todo grande artista: como a sociedade estaria apta a receber uma nova arte, um novo pensamento, que afirme a vida em toda a sua exuberância e potência?

Alemão nascido na cidade de Leipzig, Richard Wagner já estava inserido no meio artístico. Seu pai, Fiedrrich, foi pintor e dramaturgo; seu padrastro, Ludwig Geyer, ator; assim como duas de suas irmãs mais velhas - outra era cantora de ópera. sua mãe Johanna, regia a prole. Com o seu tio Adolf, o menino talentoso passava parte de seu tempo em sua biblioteca, entrando em contatocom obras consagradas para a história da humanidade, nutrindo um especial interesse por Johann Von Goethe e Willian Shakespeare.

Leipzig - situada na Saxônia, Leipzig é uma região histórica do ponto de vista religioso, bélico, cultural e artístico. Em Leipzig ocorreu em 1519, o debate religioso envolvendo, entre outros Martin Luther (Martinho Lutero), um dos fatos históricos da reforma protestante. a Batalha das Nações que terminou com uma épica vitoria de russos, prussianos e aliados sobre o exército de Napoleão Bonaparte, teve como cenário a bela cidade. Nasceram ou viveram na região alguns dos maiores compositores de todos os tempos: Bach, Wagner, Schumann e Mahler. entre os notáveis que passaram pela universidade de Leipzig estão Nietzche, Goethe eo linguista Ferdinand Saussure.

Vivendo um período de sua infância em Dresden, Alemanha - local que lhe despertou o interesse pelo teatro, principalmente em razão das peças que ajudava a montar com os seus familiares -, Wagner logo depois retorna À sua cidade natal para fortificar os seus estudos em cultura clássica e em literatura. Precoce e sempre repousando um olhar atento a cotidianidade, bem como a toda cultura européia, sua vontade de expressividade o levou a feitos consideráveis para um garoto: composições para piano e violino, traduções do grego antigo para a língua pátria, realizações de dramas e poemas épicos, ensaios, sem contar as discussões acaloradas com a intelectualidade artística da cidade.

Contudo, foi ao presenciar a execução de Sétima Sinfonia de Beethoven, em 1929, que o artista vislumbrou a música como um meio pelo qual ele pudesse expressar toda a sua potencialidade criadora, vindo a ingressar na Universidade de Leipzig dois anos depois desse acontecimento. Percorreu por sonatas e sinfonias descobrindo finalmente na ópera o gênero artístico a ser investido. Teatro, drama, música e literatura, cenografia, luzes, cores. Uma arte completa.

Beethoven - Ludwig Van Beethoven (1770 - 1827) foi um compositor alemão e um dos maiores músicos da história. Por volta dos 26 anos, coeçou a apresentar problemas graves de audição, que não o impediram de compor sonatas, concertos para piano e sinfonias entre as quais aquela que é uma clássico da música, a Nona Sinfonia.

Conseguindo um cargo de regente na cidade de Magdeburgo, Wagner foi desenvolvendo as suas noções de rtimo, melodia e harmonia, resultando nas suas primeiras óperas: As Fadas (1834) e Amor Proibido (1836).

Atravessado por sucessos e fracassos, o compositor perseverava pela receptividade de sua obra. Mesmo atolado em dívidas - fora sentenciado à prisão e era perseguido por toda Alemanha -, Wagner encontrou guarida na capital da Letônia, assumindo o posto de regente do teatro municipal. Contudo, essa temporada no país vizinho causou muitos embaraços para o desenvolvimento de suas composições, resultando em sua fuga para Paris. A passagem do músico na cidade- luz resulta na sua prisão e na conclusão da sua terceira ópera Rienzi, o Último dos Tribunos, ambas ocorridas em 1840. Liberto, o compositor ainda não encontrou espaço para manifestar a sua arte, regressando a Dresden logo em sequência: sua carreira deslancha a partir daí. Residindo fixamente na cidade, Wagner conseguiu executar a sua ópera no Teatro da Corte e, em razão do grande sucesso de crítica e público, é nomeado diretor artístico e regente da casa. Com essa estabilidade termina O Navio Fantasma (1843), ópera que acarretou novas problematizações à sua visâo de mundo.


ARTE E POLÍTICA

Na segunda metade do século 19, a Europa viva um momento de agitação política sem precedentes, onde não só as monarquias absolutistas estavam sendo postas por terra, mas inclusive aquela forma que se intitulava uma evolução a ela: a democracia. Em meio a isso, surge um ator social que estava despertado de seu sono profundo e que agora lutava por assumir as rédeas do jogo: o povo.

Quanto a isso, Wagner nunca esteve alheio à marginalidade da sua sociedade: nos momentos em que se saturava com as burocracias do cargo que ocupava ou mesmo quando ficava exaurido com a elaboração de alguma atividade artística, era comum o compositor se relacionar com a população excluída - em especial meninos e meninas de rua - para sentir um outro frescor da realidade; embriagava-se dos seus prazeres e dissabores a fim dde chegar a uma sensação rara capaz de ser sentida por qualquer ser humano. Esta era a principal condição de honestidade para com a sua arte.

E no meio deste contexto conturbado em que vivia o Velho Continente, emerge a figura do revolucionário Mikhail Bakunin. Refugiando-se em Dresden, esse agitador russo, um dos teóricos do anarquismo, ficou encantado em presenciar a encenação d´O Navio Fantasma, uma vez que continha muitos dos elementos da filosofia de vida pelos quais lutava por concretizar; apocalíptica, potente, anunciadora de uma nova ordem. A paixão pela destruição é uma paixão criativa, declarava o agitador efusivamente.

Mikhail Bakunin - Teórico político e revolucionário anarquista russo, Mikhail Alek-sandovich Bakunin (1814-1876) escreveu livros como Deus e o Estado e Estatismo e Anarquia, se notabilizando também pelo seu embate com Karl Marx na Primeira Internacional. Bakunin foi um defensor da ação direta e participou de vários levantes.

Anarquismo - Filosofia política que visa a emancipação do indivíduo e da sociedade sem a presença de instâncias de poder. Para viabilizar essa organização autogestionária, iria se investir na criação de uma cultura pautada nos princípios de igauldade, apoio mútuo, ação direta, antiautoritarismo e internacionalismo.

A atração entre ambos foi inevitável. Imagine quão foi significativo ao gênio de Wagner descobrir idéias tão inflamatórias à vida e denunciadoras da escravidão em que o humano se encontrava, como aquelas proclamadas pelo anarquismo: "Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado,dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, comandado, por seres que não tem nem o título, nem a ciência, nem a virtude. "Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido. É, sob pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência à primeira palavra de queixa, reprimido,multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eia a sua justiça, eis a sua moral!", célebre manifesto de Pierre- Joseph Proudhon, o primeiro a seu qualificar como anarquista.

Com Bakunin, Wagner participou da insurreição contra o governo de Desdren, em 1849, organizando barricadas contra as tropas prussianas que se dispunham a aniquilar toda a força revolucionária que lá se manifestava. Para continuarem vivos - já que ambos foram jurados de morte - o exílio da Alemanha foi o que restou, seguindo então cada um o seu caminho.


WAGNER E NIETZSCHE


A força avassaladora de Wagner era contagiante e também afetou outro jovem talento. Com formação em filologia e com uma vasta experiência musical, Friedrich Nietzsche elegeu o compositor como seu artista-modelo. Espíritos altivos e problematizações em comum foram os principais fatores que ligaram um ao outro, enlaçando uma intensa amizade que perdurou por aproximadamente por dez anos (1868-1878).

O filósofo alemão rompeu com toda a tradição do pensamento filosófico ao questionar a origem dos valores criados ao longo de toda a história da humanidade. Não se resignando às conceituações estabelecidas, muito menos se rendendo a explicações divinas ou inatas a respeito, Nietzsche, à maneira de um arqueólogo, examina, examina os vestígios da civilização e faz uma descoberta impactante: são forças em conflitos que produzem os valores.. Conflitos de interesse entre grupos, de maneiras de enxergar a vida; faíscas pelo poder. É desse emaranhado de pressões político-filosóficas que serão cunhados os princípios e regras que regerão um grupo, uma sociedade.

Mas nossos valores não expressão uma vida alegre, afirma Nietzsche. O ser humano não foi capz de se libertar de seus fantasmas existenciais - medos, dor, perdas, morte - e o seu desejo de conservação (reativo) se sobrepunha ao de criação (ativo). Assim, os valores que vinham sendo erigidos por essa via nada mais eram senão inevitáveis resultados de uma vontade impotente para superar o estado das coisas e as inconstâncias próprias da natureza. O caos, o obscuro, o imponderável e o intempestivo passaram a ser vistos como uma ameaça e, como tal, deveriam ser afastados da existência. a partir de então, segue o filósofo, passou-se a malquerer a vida terrena e idelaizar a salvação humana em um mundo tido como superior, celestial, metafísico.

Dessa perspectiva ascética, planos transcendentes de organização da vida e sistemas de julgamento foram criados. Emergia-se então a lógica da punição e recompensa: estabelecia-se um bem e um mal, um certo e outro errado, legitimavam-se tipos de conduta e reprimiam-se outros sempre com base nessas orientações reativas; caso a sua postura estivesse de acordo com a ordem estabelecida, você usufruía de todos os direitos de uma vida em sociedade; em caso contrário, o limite era a morte.

É por essa via que Nietzsche se lança: para construir uma filosofia do futuro, uma nova cultura, um novo tipo de ser humano, uma nova arte, seria necessário abraçar a existência por inteiro. Afirmar o caos e não negá-lo. Com isso em vista, deveríamos superar - transvalorar - todos os valores regentes até então.

Ora, mas trilhar por um caminho desses, que nos tira totalmente do chão em que pisamos, tenderia a nos levar ao desprezo (demasiado) humano e suas maneiras de viver, não é mesmo? Como se isso não bastasse, essa linha de pensamento nos conduziria inevitavelmente à loucura. Contudo, continua Nietzsche, para percorrer essa jornada, o aventureiro- guerreiro deveria ter uma determinação inquebrantável para não se perder nesse deserto e não se envaidecer com as conquistas que ia adquirindo: vontade de potência. A fábula intitulada As Três Metamorfoses do Espírito, contida no seu livro- poético Assim Falou Zaratustra, narra de uma maneira sublime esse jogar-se: ao se decidir pela sua libertação, primeiro o espírito é camelo - de suportação - vez que ele não vai dispor de nenhuma proteção para a sua caminhada, ficando à mercê do acaso, do frenesi das forças que lhe atravessam. Acuado, mas determinado a seguir em frente, o espírito aprende a dizer "não" - o leão. Mas a conquista da temeridade não será o suficiente para a sua libertação: é preciso sorrir, brincar, dizer "sim" - a criança. O sucesso desse caminhar, continua, repousaria então na conciliação entre o dionisíaco (deus do caos e da sensualidade) e o o apolíneo (deus das formas, dos contornos), isto é , a vontade de potência deve ser necessariamente estilizada - ética e esteticamente - pelo indivíduo para que assim ele possa se modificar e criar realidade.

Essa maneira de encarar a vida guarda fortes ressonâncias com a tragédia grega. Wagner e Nietzsche resgataram toda a beleza e força desse gênero artístico (Édipo Rei, de Sófocles; As Bacantes, de Eurípedes, e Prometeu Acorrentado de Ésquilo, são algumas das principais tragédias já concebidas) para a concepção dos seus pensamentos. E em toda a obra do compositor - destacam-se as óperas Tristão e Isolda (1859) e O Anel do NIbelungo (1874) - a idéia do trágico é encontrada em termos nietzschianos, é a simbolização máxima da superação da forma-deus e forma-homem para se chegar à forma super-homem.

Continua na próxima semana...
Fonte: Revista Filosofia - Conhecimento Prático (número 34. p. 52-57)

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