Por José Saramago
Este meu gosto de museus e pedras velhas que no parecer de alguns denunciará uma suspeita tendência por evasões, é pelo contrário, o sinal mais certo de uma viva radicação no mundo em que estou. De fato, não creio que alguém possa com verdade, dizer-se do seu tempo, se não se sentir envolvido num todo geral que abarque o mundo como ele é e como ele foi. Aquele corpo ressequido, dentro da sua caixa de vidro, no Museu Britânico, que foi um corpo vivo há três mil anos, desencadeia imediatamente em mim um processo mental que me mostra a história dos homens como uma imensa rede de braços, uma iluminação de olhos, um rumor de passos dentro de um formigueiro. E quando numa noite de Paris dei com a Notre Dame dentro do nevoeiro, sob a luz amortecida dos projetores, e parecendo toda ela uma construção estranhíssima de pedra roxa, não tive mão em mim que evitasse umas tantas reflexões caseiras que logo me afastaram das pacíficas banalidades estéticas.
Aqui em Portugal, se não exagero, temos a pecha de falar de mais da história que vivemos e fizemos, quando afinal não somos os únicos a medir a história pátria em séculos, e se é verdade que fomos os descobridores e marinheiros, parecemos esquecidos de que todos os povos virados aos mares e aos oceanos algo acabaram também por navegar e descobrir: os gregos como os fenícios,os escandinavos, como os holandeses, os espanhóis, como os italianos.
Bem sabemos que de evidências deste gênero se alimenta a vaidade dos povos, e a xenofobia que quase todos cultivam: por essa via, cada um há-de sentir-se o melhor, o mais ousado, o mais culto, o mais adiantado, uma espécie de eleito de parcialíssima divindade; que dividisse a história em gomos como uma laranja, e a distribuísse ao sabor de suas inclinações. Creio que país nenhum se livra deste pecado de soberba, e isso nos desculparia se tal comportamento não se agravasse em nós como um claro divórcio entre o que vamos dizendo e o que somos capazes de sentir. Falamos em glórias passadas, das conquistas, das descobertas, como de fantasmas imateriais e que os compêndios escolares não dão vida, nem as pedras mortas substância. Gostaria bem de saber, por exemplo, se o povo português se sente realmente herdeiro de Bartolomeu Dias e de Gil Vicente, de Afonso Henriques e de Luis de Camões, de D. Dinis e de Fernão Lopes. Seria um teste a fazer entre nós, e muito menos gratuito do que poderá parecer a gente apressada que faz todos os dias a revolução cultural.
Claro que não estou a pensar em cultivar um tipo de devoção historicista toda voltada para o passado, para os "bons tempos" em que fomos senhores do mundo ou, mais modestamente, do nosso caminho. Tratar-se-ia, antes, de desnredar esse caminho do amontoado do tempo e dos acontecimentos, de modo a encontrar-nos, como povo, conscientes agora, de um tempo histórico vivido e assumido, perante a nova sociedade (e quem sabe a nova civilização) que em todo mundo se forma, entre os sobressaltos e os estertores do que ainda não há muito tempo, parecia tão sólido tão para durar.
Vistos de longe (e visto de perto depois) damos de algum modo a idéia de vivermos o nosso dia- a-dia como se não tivesse havido ontem e não haja amanhã numa espécie de sonambulismo fatalista que espera resignadamente a repetição do terremoto de 1755. Ou então que um braço salvador (talvez D. Sebastião) nos arranque a todos de um só puxão do vagaroso afundamento em que nos distraímos . Individualmente. Coletivamente.
Esse arrazoado melancólico, ninguém o pediu ao cronista e mais certo é que lho censurem os que do optimismo fizerem profissão e credo. Mas a pergunta: "que seremos amanhã" é para mim uma obssessão, uma voz murmurante, um grito em certas horas de silêncio. A resposta (se algum dia vier a ser dada) é infinitamente plural, mas nela não estará nenhuma contribuição minha, nunca como hoje se pôde brincar menos com coisa sérias, e as exigências da análise que a ela levaria são tais e tão diversificadas, que o simples cronista que eu sou se deverá dar por satisfeito com o aflorar ao de leve as interrogações mais próximas. É o seu modo de estar presente, de intervir, de amar o povo a que pertence.
José Saramago com sua visão filosófica e lírica do cotidiano nos convida a esta reflexão do que fomos e do que seremos. É uma visão que fala do mundo e é uma questão que também cabe a nós como subjetividades. Falar de psicologia sempre foi evocar subjetividades, mas na atualidade a psicologia quer participar das discussões e acontecimentos que também nos faz seres mais sociais, como nunca deixamos de ser. Somos um todo como mundo físico, alojando múltiplas subjetividades afetando e sendo afetados pelo que nos rodeia, com nossas responsabilidades que ora assumimos ora negamos. Esta é a razão deste blog ser tão diverso.
O autor traz referência da sua terra, com seu idioma típico que transcrevemos, mas suas reflexões evocam questões universais. Saramago é um escritor que tem como matéria prima os acontecimentos do dia a dia, mas em nada é óbvio. Lindo.Teremos mais Saramago por aqui.
Fonte: A Bagagem do Viajante - Crônicas Editora Companhia das Letras
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