Cuidando do Cuida-dor
Por: Darcy Cesário Franca*
“Há dias que a gente
se sente,/ como quem partiu ou morreu,/ a gente estancou de repente/ ou foi
mundo então que cresceu./ A gente quer ter voz ativa/ e quer no destino
mandar./mas eis que chega roda viva/ e carrega o destino pra lá.../ Roda mundo,
roda gigante/ roda moinho roda pião,/ o tempo rodou num instante,/ nas voltas do
meu coração.”
Foi com esse
fragmento da canção do Chico Buarque que me remeti ao escutar os cuida-dores
dos doentes de Alzheimer pela primeira vez e a cada vez que os escuto desde
2001 quando a Associação Brasileira de Alzheimer, Regional do Pará – Abraz- PA
me chamou para prestar atendimento psicológico ao cuidador familiar ou
profissional, dos doentes de Alzheimer
A princípio vou falar
resumidamente sobre a doença de Alzheimer ou DA e depois contarei a maneira
encontrada para atender os cuidadores.
Alzheimer é uma
doença degenerativa e progressiva, conhecida erroneamente como “esclerose” ou “caduquice”,
e acomete preferencialmente pessoas idosas, e ainda não se tem conhecimento
sobre sua causa e tratamento. Embora seja confundida com a esclerose, não se
relaciona com ela, nem tampouco com problemas circulatórios. É uma forma de
demência devida a morte das células cerebrais que produz o atrofiamento do
cérebro. E dentre as várias teorias para explicar suas causas, a que a
considera como uma doença geneticamente determinada é bastante aceita.
Os primeiros sintomas
manifestados são pequenos esquecimentos e, em geral, são percebidos pelos
familiares como coisas do envelhecimento. Esses só vão procurar ajuda profissional
qualificada quando o doente passa apresentar alterações significativas da
personalidade e do comportamento. Tornando-se cada vez mais confusos e
esquecidos, desorientados quanto ao espaço e tempo; sentem-se perseguidos e, numa
grande maioria das vezes, tornam-se também agressivos. O agravamento
progressivo da sintomatologia conduz o doente à completa dependência do
cuidador, pois o esquecimento que era fortuito, leva à perda total da memória,
evoluindo da memória atual à antiga, sendo que a memória musical é a última a
ser perdida.
A partir de pequenos
esquecimentos, por vezes engraçados – “colocar sal no café” ou “açúcar no
feijão” – se chega à completa indiferença para com os seus, para com o mundo em
volta e para consigo mesmo. O desconhecimento dos familiares vai se instalando,
não sabendo mais quem são os filhos, netos, ou o parceiro (a). Perde a auto
referência a ponto de passar diante do espelho e cumprimentar aquele que lá
está, por não reconhecer sua própria imagem refletida. ‘Quem é você?’, ou ‘Quem
é ele?’ são as perguntas que o sujeito faz diante do espelho pois ‘Quem sou eu?’
não pode mais ser feita porque o sujeito já não está mais presente,
ausentou-se, ou vai ausentando-se sem alarde, numa saída discreta pela porta
dos fundos da vida. Enquanto o organismo que ainda funciona e permanece em
contato com os familiares, o sujeito já não mais está, por conta do
esvaziamento pulsional.
Juntamente com a
perda da memória, as funções corporais também vão sumindo, aparecendo a
dificuldade de locomoção, perda do controle dos esfíncteres e da capacidade de
deglutição, exigindo, assim, um acompanhamento constante de um cuida-dor para
auxiliá-lo no exercício das atividades elementares do cotidiano, tais como
alimentação, higiene, vestuário etc.
Com um tufão, a DA
invade o cotidiano do doente e da família e, muito mais intensamente, daquele
que é ‘eleito’ cuida-dor. Eleição esta que, na maioria das vezes, é feita de
maneira inconsciente.
O grupo familiar
coloca um membro, que se deixa colocar, no lugar de ciuda-dor. Às vezes, as
circunstâncias habitacionais, econômicas etc., contribuem para isso. Mas mesmo
quando essas razões são claras, ao longo do atendimento outros motivos que
subjazem a ‘tecitura’ afetiva familiar vão comparecendo para elucidar a escolha
daquele membro como cuida-dor, assim como o seu processo de ficar no lugar de ‘bode-expiatório’,
ou de ‘aparador’ do sofrimento do grupo.
Assim sendo, o
cuida-dor é aquele que cuida da dor. Que cuida do outro que foi atingido por
uma doença avassaladora e impiedosa, cujo alvo não é somente o sujeito, mas
todos aqueles que o cercam, em um raio bastante amplo. E é também o que é
alvejado pelas dores produzidas na família pela DA, tendo que suportar as
exigências impostas pela doença, pela família e por si mesmo.
A DA altera a rotina
familiar do cuidador, modifica o espaço físico e temporal e tonteia fortemente
o psiquismo. Os afetos são bulidos e remexidos. Os filhos (as), esposas (os),
netos (as) etc. perdem o seu lugar afetivo e vão ocupar o lugar de pessoas
existentes na vida do paciente em um passado remoto, ou então, ocupam lugar
nenhum. É frequente a aparição de um desconhecido com hábitos, valores e afeto
inteiramente opostos àqueles que possuíam antes. Sem pudor, o paciente tira a
roupa e toca a sua genitália na frente de outras pessoas. Mesmo a senhora mais
recatada ou o cavalheiro mais respeitador pode passar a falar palavrões, os
mais obscenos sem distinção de lugar, hora ou espectador.
Se o cuida-dor é
descendente do doente de Alzheimer, um medo beirando ao horror instala-se em
sua vida. A inquietação atormenta-o por pensar que poderá vir a ser o herdeiro
do DA. É um sofrimento inigualável que o assola, embora saiba que a teoria que
reconhece a DA como geneticamente determinada não sustenta sua hereditariedade.
Parece que diante da incerteza do que está vivendo e da errância humana,
apega-se a isto como uma certeza e não como uma possibilidade.
Diante dessa
compreensão e de um grupo de auto-ajuda que se reunia na sede da Albraz- PA,
organizei um grupo de apoio e reflexão como atividade de um projeto que
desenvolvo na Universidade Federal do Pará. Eram pessoas de diferentes faixas
sociais, econômicas, sociais, educacionais e etárias. Os vínculos com os
doentes de Alzheimer também eram muito heterogêneos. Tinham netos, filhos,
esposos, esposas, irmãos, sobrinhos, noras, cunhados, amigos e os cuidadores
profissionais.
É um grupo aberto que
se reúne uma vez por semana, com duas horas de duração. Nunca se sabe quantos
participantes virão, assim como não se sabe se os que virão hoje serão os
mesmos que vieram na semana passada, nem tão pouco se virão na próxima semana. A
rotatividade é grande, por muitas razões. Pode acontecer porque o paciente
piorou e não se tem com quem deixa-lo pra vir ao grupo ou porque o cuida-dor
participante adoeceu; pois diante de tamanho sofrimento, não é incomum a baixa de
sua resistência, ficando à mercê de doenças físicas e da depressão.
No grupo, os
sentimentos vão encontrando lugar para serem manifestados. A sensação de estar
só, isolado, desamparado, vão comparecendo e, ao mesmo tempo, encontrando eco e
ressonância nos outros membros, que dão acolhimento e apoio. A inevitável
pergunta ‘por quê isso está acontecendo comigo?’ vai encontrando alguma
resposta, ou gritando menos. Ou, até mesmo, vai sendo modificada: ‘Por quê isto
acontece conosco?’ A troca é um elemento principal em cada encontro – quer seja
de esclarecimentos teóricos, de reflexão sobre as emoções, de orações, abraços,
apoio, informações ou sobre um cida-dor profissional.
Os afetos
contraditórios vão emergindo, mesmo aqueles que são considerados como “sentimentos
horríveis” ou “pecaminosos”. À medida que um membro permite falar sobre eles,
os afetos, os outros membros vão fazendo coro, ou utilizando-se daquele que
fala como porta- voz de seus pensamentos e desejos escusos. Aliviando-se, mas
por vezes, angustiando-se ainda mais, voltando na próxima sessão em busca de
acolhimento e especularização.
A raiva, a mágoa e a
culpa são afetos que se entrecruzam no cuidador. Quer por sentir-se abandonado
pelo doente, quer pelo investimento que tem de fazer em alguém que dá um
retorno cada vez mais escasso, ou nenhum retorno, ou pelo que viveu com o seu
familiar antes do Alzheimer aparecer. A impotência diante da DA, e de seu
familiar, abate ao que cuida. Sua voz não é escutada. Pois os ouvidos do doente
foram ensurdecidos, não fisiologicamente, mas afetivamente. A alma ensurdece
não mais respondendo ao que invade o ouvido. A saudade, frustração,
agressividade, raiva, medo incerteza, pena remorso, admiração, rancor e respeito
são afetos que formam uma tessitura furtacor na alma do cuida-dor e que
confunde. Além do mais, sente-se culpado por ter esses sentimentos. Afinal,
está inscrito na cultura que não se pode sentir, muito menos manifestar tais
afetos, principalmente por aquele que sofre. E se este for pai ou mãe, pior
ainda. É pecado!
Nesse vai e vem, o
cuida-dor vai aprendendo que pode sentir e manifestar o afeto que tem por seus
familiares, por seu doente, por si mesmo, pela sociedade, pelo mundo e por
Deus. Também vai aprendendo a lidar com sua impotência frente à demanda de uma
realidade com DA e, principalmente, com suas auto exigências.
Vai sendo reconhecido
e reconhecendo-se como alguém que também precisa de cuidado que
precisa de apoio e parceiros para o enfrentamento da tarefa que está sobre ele.
É encorajado a buscar apoio nos outros familiares, assim como responsabilizá-los
também pelos cuidados, distribuindo tarefas, tempo, responsabilidades financeiras
etc. aprende também que pode fazer um afastamento do alvo de seus próprios
ataques e da mira dos outros familiares que, por vezes, inconscientemente, o
fazem depositário de seus afetos angustiantes.
Em sendo assim, o
grupo passa a ser um ponto de apoio na inabilidade do cuidador, para tratar com
o seu doente no dia a dia. Um lugar onde encontra outros iguais, estabelecendo
uma relação de troca de experiências e afetos. Assim como desenvolve o
aprendizado para lidar com seu doente, vizinhos e familiares, encontra também
no grupo o espelho no qual vê a face marcada pela dor – do outro e da sua.
Dor de cuida-dor que
precisa ter sua dor cuidada.
Descobre que não está
sozinho e que tem um grupo do qual vai se fazendo pertencente, incluindo-se no
campo da possibilidade e não da idealização, e mesmo que a oração do cuida-dor
peça serenidade diante da tempestade da vida, coragem frente ao medo que o
invade e sabedoria quando nada sabe, descobre que, em algum momento pode falar:
‘Eu não aguento mais!’
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(*) Psicoterapeuta e
psicanalista e grupoanalista da Clínica de Psicologia da Universade Federal do
Pará (UFPA), pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Psicopatologia
Fundamental da UFPA, mestre em Teoria Literária – interface entre literatura e
psicanálise- e coordenadora do Projeto Atendimento Psicológico Grupal, em
prevenção e tratamento à comunidade de baixa renda da Amazônia
Fonte; Revista Diálogos – Conselho Federal de Psicologia
abril/2004
Achei interessante trazer este texto antigo
por ter na minha família uma pessoa que está no que parece ser a fase inicial
desta doença e as pessoas que estão mais próximas cuidando, costumam de modo
geral se sentirem tomadas por muitos sentimentos, aliados à desinformação sobre
a doença e qual deve ser a postura daquele que cuida. Gostei do modo como minha
colega tratou do assunto neste belo texto objetivo e competente. O
que o torna capaz de ser lido não só por aqueles que trabalham com psicologia.
Muito mais complexo se torna o problema
quando temos um sistema de saúde público incapaz de lidar com consultas e
exames simples de rotina, quanto mais uma doença como esta que necessita de um
atendimento mais especializado e a detecção precoce pode ajudar a garantir ao
doente alguma qualidade de vida.
Listamos aqui um site que pode ser útil àqueles que passam por situações semelhantes:
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