Por Roberto DaMatta
Para Ana Maria Machado e Merval Pereira
A expressão é parte do vocabulário dos sistemas políticos que perseguem um equilíbrio inalcançável entre pontos de vista particulares e o sistema que sustenta a sociedade movidas por competição eleitoral. Quando há competição eleitoral (como ocorre no liberalismo) há equilíbrio, mas em contrapartida, não há conflito de interesse já que o interesse do Grande Irmão ou do Partido despoticamente sufoca tudo.
Mas no liberalismo de Montesquieu há, de um lado, a motivação por ganhos e, de outro a consciência das implicações (e dos custos) da realização dessas motivações para a coletividade. E quando o Fulano ou o Sicrano souberem? Será que a proposta está de acordo com as normas do sistema? Questionam todos os interessados que querem realizar o seu empenho, o qual demanda visibilidade, pois o sistema precisa como num jogo de futebol, de testemunho público e de "transparência". O que poderá ocorrer se eu for contratado em surdina, digamos pelo Ministério do Turismo, para planejar o panorama do turismo no Brasil nos próximos quatro anos pela modesta quantia de 50 milhões de reais? Como ocorreu a contratação? Quem a propôs? Que tipo de relacionamento eu teria com certas pessoas do Ministério? Quem competia comigo ou quem inventou a idéia e assim por diante são perguntas mais do que legítimas que surgem aos berros ou sussurros, buscando a legitimidade (ou a face externa) do processo. Por que a legitimidade (uma dimensão capital das ações sociais que Max Weber suscitou na sua obra) diz respeito a presença do político ou da totalidade nos processos sociais. Eu posso fazer sozinho mas quem aprova comprando, lendo ou apoiando é a sociedade! A legitimidade fala da reação da coletividade diante de fatos que ocorrem no seu meio. Se os fatos forem opacos ou bizarros (como pode uma pessoa enriquecer 20 vezes em 2 dias; ou porque os "parques de diversão" se transformaram em "parques de aflição" na cidade do Rio de Janeiro), eles trazem de volta a lógica do bom-senso - a voz de todo ao qual também pertencemos.
O poder passou do carisma e da tradição (as pessoas nasciam, não se elegiam reis...) ao sistema burocrático-legal que se interpõe e administra os eternos conflitos entre os interesses particulares e a moralidade coletiva. As leis feitas para todos e o seu aparelho institucional são as almas do sistema democrático. Os interesses são as mãos visíveis dos desejos legítimos (ou escusos) de enriquecer e de ter sucesso. O problema é saber o que, como e quando tais interesses se sustentam num jogo no qual muitos agentes começam a oferecer simultaneamente os mesmos bens e serviços de modo cada vez mais igualitário e impessoal ao estado e ao "governo". Impossível, porém, perceber conflitos de interesses num sistema familístico no qual os governantes se apossavam do governo e do "poder", concebido como um modo de liquidar adversários, de ajudar parentes, partidos e amigos; e de aristocratizar quem o alcançava. Nesta concepção não havia uma diferença entre interesses do todo (ou da sociedade) representado pela administração pública e os interesses do "governo" que se confundiam com os segmentos certos de que "agora é a nossa vez".
Antigamente havia quem não pagasse imposto de renda no Brasil. Hoje todos pagamos impostos - mutos impostos. A teoria é puro bem-senso; paga-se mais quem ganha mais; e os impostos pagos são redistribuídos em bens e serviços que contemplam todo o sistema engendrando interdependências. Antigamente prestávamos mais atenção a cobrança; hoje - eis a revolução - prestamos muito mais atenção a redistribuição! A partir da vivência com um mundo mais transparente, repleto de problemas e informatizado, ficou claro que tal "estado" - esse engenho que recolhe e usa os dinheiros de todos - não funciona pensando na coletividade que ele representa e deve servir, mas opera claramente em benefício de uma ou outra entidade que nós no Brasil chamamos de governo e que é, de fato, uma das encarnações mais negativas, senão a mais negativa do estado entre nós.
È Precisamente isso que precisa ser mudado. Não dá mais para continuar a operar num sistema político no qual "ter poder " é distribuir cargos em vez de usar desses cargos como instrumento de gerenciamento público. Não é mais possível pensar o "poder" como algo ao sabor das pessoas, partidos e interesses - como um recurso para aristocratizar grupos que dele fazer parte por nomeação, vínculo ideológico ou eleição. Está passando o tempo no qual o governo podia ser "dono do Brasil" e como tal gastar bastarda e irresponsavelmente o fruto do nosso trabalho, ignorando o nosso país e pensando exclusivamente nos seus comparsas. O limite da demagogia que inventou esse híbrido de eleição tem tudo a ver com a incoerência entre pessoas e papéis. A final, um ator medíocre não pode interpretar Hamlet, do mesmo modo que é preciso fazer com que o estado e sobretudo o governo sejam servidores da sociedade, a ela devolvendo o resultado do trabalho de seus cidadãos comuns. Afinal, a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus.
Roberto DaMatta é antropólogo
Fonte: Jornal O GLOBO - Opinião p.7 (24/08).