Este texto da Martha Medeiros tem cores fortes no trecho que fala da nossa covardia e preguiça diante de uma efetiva tomada de posição frente àquilo que optamos por esquecer (penúltimo parágrafo). Na minha opinião, nos definir como covardes ou preguiçosos nas situações que somos em algum momento incapazes de encarar com a lucidez e vigor de quem busca estar bem consigo mesmo e com o mundo, serve para ampliar a extensão de uma circunstância em nossas vidas que apenas poderiam ser definidas como experiências - atitudes de uma vida que ainda opta por ignorar a possibilidade de se movimentar de outros modos no mundo em função de uma visão perceptiva restrita mas que pode aprender a se ampliar. Por isso que admitir o "incômodo", usando as palavras da autora, não é "fricote", mas importante elemento de libertação do indivíduo que também está no mundo. Admitir nossas covardias e nossos fricotes e todos os erros que cometemos como parte do nosso caminho de amadurecimento é admitir-se humano. É belo também.
'Tempos de amnésia obrigatória'
" Esquecemos de quem somos. Dos nossos ideais, das nossas vontades, dos nossos sonhos, das nossas crenças, tudo em nome de uma adaptação ao meio"
Por Martha Medeiros
Com diferença de poucos dias, uma amiga carioca e um leitor gaúcho me enviaram vídeos protagonizados pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano. Em um ele dá uma entrevista e, no outro, lê os próprios textos. Ambos os programas estão acessíveis pelo YouTube. Respeito as coincidências: como é que eu ainda não havia me dedicado a esse grande pensador humanista?
Num dos vídeos, Galeano aparece lendo seu texto "El derecho al delírio", em que descreve como seria um mundo ideal, e aproveita para homenagear aqueles que insistem em não esquecer a própria história (a exemplo das mães da Plaza de Mayo) nesses tempos de amnésia obrigatória.
A partir daí não ouvi mais nada, pois, considerei marcante essa expressão: "Tempos de amnésia obrigatória". O assunto merecia um tratado. Amnésia. É o que explica tanta neurose e tanta infelicidade. A gente procura esquecer para poder ir adiante, mas que espécie de caminho trilhamos quando não enfrentamos a verdade?
Esquecer é uma estratégia de sobrevivência. Somos todos uns esquecidos crônicos. Para começar, esquecemos de alguns descuidos que sofremos na infância, pois fomos educados para considerar pai e mãe infalíveis. Dessa forma, nossas dores internas acabam ganhando o apelido de fricotes, só que esses fricotes viram traumas, e esses traumas minam nossa confiança na vida e sustentam os consultórios psiquiátricos, já que esquecer é uma forma de impedir a compreensão absoluta de nós mesmos e alguém precisa nos ajudar a lembrar para nos libertarmos.
Esquecemos os desaforos que tivemos que engolir durante um casamento ou namoro, tudo porque nos ensinaram que o amor deve ser forte o suficiente para aguentar os revezes da convivência, e também por medo da solidão que tem péssimo cartaz. então para nos enquadrarmos e nos sentirmos amados e estóicos, esquecemos as mentiras, as traições, os maus tratos, as indiferenças e mantemos algo que ainda parece uma relação, mas que deixou de ser no momento em que enfiamos a cabeça dentro do buraco.
Esquecemos em quem votamos, céticos de quem em política nada muda, e, em vez de investirmos nossa energia em manifestações de repúdio à corrupção, deixamos para lá e seguimos em frente conformados com a roubalheira, desmemoriados sobre nossos direitos.
Esquecemos principalmente de quem somos. Dos nossos ideais, das nossas vontades, dos nossos sonhos, das nossas crenças, tudo em prol de uma adaptação ao meio, de uma preguiça em desfazer o combinado e buscar uma saída alternativa, de uma covardia que gruda na alma e congela os movimentos. Esquecer de nós mesmos é assinar um contrato com a resignação.
Obrigada, Galeano, por nos lembrar que a amnésia é uma opção, não é obrigatória.
Fonte: Revista O Globo