Leituras da mente: neurociência avança no estudo da consciência e se aproxima de questões filosóficas discutidas por Aristóteles, Dante e Shakespeare
Guilherme Freitas
Enquanto explica a um leigo as principais teses de seu novo livro, "E o cérebro criou o homem" (Companhia das Lettras, tradução de Laura Teixeira Motta), o neurocientista português Antônio Damásio recorre alternadamente a estudos de ponta em suas área e à obra de alguns dos principais filósofos ocidentais, como Descartes e Spinoza. Mais que uma estratégia de popularização da ciência, a postura de Damásio pode ser entendida como uma tentativa de conectar os avanços nas pesquisas sobre consciência, memória e percepção a um tipo de reflexão sobre a natureza humana que costuma ser mais associado à filosofia, à psicologia e às artes.
Essa postura já estava presente no livro que tornou Damásio conhecido fora dos círculos acadêmicos, "O erro de Descartes", de 1994, no qual defendia que a neurociência fornecem argumentos que ultrapassam o dualismo entre corpo e mente proposto pelo filósofo. O livro novo incrementa a tese com descobertas recentes que indicam que o córtex, região mais complexa do cérebro, não é a única "base" da consciência como se costuma crer - ela estaria ligada também ao tronco cerebral, responsável por funções corporais mais primitivas, como o ritmo cardíaco e a respiração. Essa concepção da consciência pode ser estendida à natureza como um todo, propõe Damásio: do nível humano ao de seres rudimentares que não têm memória nem autoconhecimento, mas têm noção do que passa à sua volta.
Em entrevista ao GLOBO, Damásio relaciona essa ideia à obra de outro filósofo que ja abordou em livro ("Em busca de Spinoza" de 2003), cuja visão de consciência recusa o dualismo de Descartes. E justifica a mescla de pensamento científico e filosófico:
- A neurociência está empenha em questões com as quais artistas e filósofos lidam há séculos. Aristóteles, Dante, Shakespeare e Spinoza pensaram nos problemas mais profundos da humanidade, e nós também - diz Damásio, por telefone, de seu escritório na University of Southern California, onde dá aula de neurociência e dirige o Instituto Cérebro e Criatividade.
A presença da neurociência na seara das humanidades e da cultura popular é analisa por Maria Cristina Franco Ferraz professora da UFF e autora de Homo deletabilis: corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao século XXI" (Garamond). Em artigo publicado nesta edição, ela argumenta que o avanço da neurociência impulsiona uma cultura somática" que promove um deslocamento da relevânca da psicologia para uma ênfase crescente à biologia, sobretudo nos genes e no cérebro.
Entrevista: Antônio Damásio
'Lidamos com os os grandes dramas humanos - Neurocientista português fala sobre relação de pesquisas da área com a filosofia e critica ênfase em medicamentos'.
Em " E o cérebro criou o homem, você diz que nosso entendimento da consciência se beneficia de um "legado conceitual" da filosofia e da psicologia e de "legado neural" da biologia e neurociência. até que ponto esses campos do conhecimento podem ser complementares?
Antônio Damásio: Acredito que esses campos são complementares, mas há imensas barreiras entre eles. Tenho tentado ajudar a promover esse diálogo. Quando comecei a estudar questões relacionadas à emoção, ao sentimento e à tomada de decisões, ficou clara para mim a ligação entre neurociência e os campos do conhecimento que sempre se dedicaram ao que há de mais básico na vida, os grandes dramas humanos de decidir o que é bom e o que é mau, buscar a felicidade, rejeitar a dor e a tristeza. Como sou neurologista por formação, estou interessado em saber como o cérebro se comporta nessas situações e também quero contribuir para o tratamento das doenças como o Alzheimer e a depressão. Mas o que me fascina é que a neurociência está empenhada em resolver questões com as quais artistas e filósofos lidam há séculos, Aristóteles, Dante, Shakespeare e Spinoza pensaram nos problemas mais profundos da humanidade e nós também.
Mas onde estes campos podem entrar em atrito?
Sobretudo no que diz respeito aos métodos. Da perspectiva de artistas e filósofos, a objetividade científica pode parecer redutora. Mas no fundo não há tanta incompatibilidade. No Instituto Cérebro e Criatividade, que fundamos na Califórnia, temos visto que artistas e pensadores gostam de se aproximar dos cientistas - se não forem maltratados, claro (risos). Em nossos estudos sobre como o cérebro lida com a melodia e as estruturas musicais, por exemplo, temos a colaboração de muitos músicos, como Yo Yo Ma. Tenho esperança que essa barreira entre ciências e humanidades se resolva no futuro.
A filosofia está muito presente em seu trabalho. No novo livro, proposições sobre a consciência estão ancoradas na obra de William James. E outros livros seus remetem a Descartes e Spinoza. Como as idéias de filósofos sobre a mente humana contribuem para o desenvolvimento da neurociência?
Ao se aproximar dessas grandes questões de que falamos, a filosofia formulou inúmeras teorias. Nas últimas três décadas, com os avanços das neurociências, podemos verificar cientificamente alguma delas. Muitos pensadores da virada do século XIX para o XX, como William James e, em certo sentido Freud, podem ser apontados como precurssores da neurociência atual. A diferença é que hoje podemos testar hipóteses que há cem anos não eram verificáveis.
Com isso, pode haver o caminho inverso, com a neurociência influenciando a filosofia?
Sim vejo jovens filósofos extremamente alerta para o que se passa no campo da neurociência. As gerações mais antigas muitas vezes pensam que a neurociência tenta roubar da filosofia seus temas tradicionais. Mas entre os mais jovens há uma grande abertura para as contribuições da neurociência, o que é vantajoso para ambos.
Um dos pontos centrais do novo livro, é o estudo de que o cérebro constrói a mente e como torna essa mente consciente, uma questão central também na história da filosofia. Em que estágio de compreensão desses fenômenos a neurociência se encontra hoje?
Hoje é possível dizer com mais convicção que aquilo que chamamos de mente é o resultado de mapas neurais que construímos, alguns muito ligados ao corpo, outros mais ligados ao meio que nos circunda. Quanto ao modo exato como a consciência é construída, obtivemos uma série de progressos, mas ainda há questões em aberto. No livro, descrevo como pesquisas recentes mostram que ao contrário do que muitos acreditam, o córtex cerebral não é a única "base" da consciência. O nível mais alto tem muito a ver com o córtex, mas níveis mais simples tem a ver sobretudo com o tronco cerebral. E a identificação da base neural exata dos sentimentos, o problema neurocientífico que mais interessa, ainda está em desenvolvimento. Acredito que nos próximos cinco ou dez anos teremos resultados notáveis sobre como o cérebro constrói o eu.
Com os avanços recentes, a neurociência corre o risco de cair no trinfalismo?
Se não chegarmos a entender tudo também não será um desastre, porque há tanta complexidade e beleza no ser humano que não faz mal se ficar algum mistério, não é? (risos). O importante é que o progresso do conhecimento não cause uma perda de humanidade. Fico desapontado quando dizem que a neurociência reduz tudo ao cérebro e a circuitos nervosos. Reduzir a natureza humana a neurotransmissores, dopamina e serotonina é muito triste.
Mas esse reducionismo é comum hoje, não? Como você avalia a presença da cultura popular atual?
O sucesso da neurociência faz com que muitos caiam em explicações simplistas. Tudo que tem relação com o cérebro é complexo, e por isso os neurocientistas devem ser explicar mais, sempre. O reducionismo traz muitos riscos. Há quem acredite que podemos resolver a dor e a tristeza só tomando pílulas, o que é ridículo. Medicamentos não são a única solução. Estamos imersos em afetos, relações sociais, a justiça, a política, a economia... Não se pode isolar o cérebro disso tudo. Não é vantajoso se neurologizar todos os problemas que temos.
FONTE: Jornal O GLOBO - Caderno Prosa e Verso - 10/12/2011
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