Por Daniel Rodrigues Aurélio - Bacharel em Sociologia Política, Pós Graduado em Globalização e Cultura pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestrando em Ciências Sociais pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. Editor das revistas Conhecimento Prático Filosofia e Guias de Filosofia.
No início da graduação, os estudantes de Ciências Sociais são apresentados aos princípios reguladores da sociedade moderna. Segundo Emile Durkheim*, autor de as Regras do Método Sociológico, atos individuais são condicionados ao social - e os desvios provocam impactos na sua coesão. Essa era a busca durkheiniana pelas anomias presentes no corpo social, figura de linguagem extraída da biologia tão própria à tentativa de validar e institucionalizar a sociologia como uma ciência no final do século 19. Depois os calouros aprendem com a obra de Max Weber que o poder se exerce baseado nos instrumentos como o monopólio da violência legítima, um dos elementos da ordem institucional.
Émile Durkhein - Sociólogo nascido em Épinal, na França. Émile Durkhein 1858- 1917) é um dos três autores clássicos da sociologia, ao lado de Max Weber e Karl Marx. É autor dos livros O Suicídio, As Regras do Método Sociológico, Da Divisão do Trabalho Social e as Formas Elementares da Vida Religiosa; suas idéias ajudaram a consolidar a escola sociológica francesa.
Na introdução à filosofia política, os futuros cientistas sociais leem os contratualistas Jonh Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. O trio teorizava sobre a melhor solução para uma adequada coexistência. Nas aulas de filosofia os alunos estudam Kant e Hegel que quebravam a cabeça para desenvolver um arranjo capaz de assegurar o diálogo entre a sociedade e o Estado, cujas teses os discentes conhecem ao estudarem os conceitos de paz perpétua kantiana e filosofia da história hegeliana. Em síntese, de acordo com esse conjunto de idéias, a convivência em grupo pressupõe algum grau de controle e regramento disciplinar. e tudo com ligação mais ou menos evidente com o processo civilizatório analisado pela psicanálise de Sigmund Freud e, tempos adiante, pela sociologia histórica de Nobert Elias.
Ao desconstruir os sistemas disciplinares/coercitivos em seu livro Vigiar e Punir, Michel Foulcaut relembra o panóptico idealizado pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, uma construção capaz de manter sujeitos sob vigilância sem que eles saibam ao certo se estão ou não sendo observados. A imagem do panóptico é a metáfora ideal para a argumentação foucaultiana de que não é preciso um regime explicitamente autoritário para que os sujeits sejam controlados e adestrados. em uma conclusão pra lá de simplificadora, o fantasma autoritário circula até nas sociedades ditas democráticas. Para Foucault, prisões, escolas e manicômios são faces visíveis de uma sociedade disciplinar que se oculta por meio do biopoder e da civilização de corpos, dois termos comuns ao vocabulário do pensador francês.
Os anarquistas, por sua vez, advogam que os indivíduos não são verdadeiramente livres em nenhuma das maneiras correntes de organização social. Os teóricos do anarquismo não pregam a desordem; eles acreditam na ordem sem coerção. e esse é o dilema que os contratualistas detectaram: como tornar minimamente harmoniosa a relação entre indivíduos? Para Hobbes, sem a mão forte do Estado- Leviatã a "guerra de todos contra todos" teria consequências catrastóficas. Já Locke sabia que, para diminuírem os atentados contra a vida e a propriedade, seriam necessários mecanismos de disciplina para defender os sujeitos contra as ameaças de terceiros, "visando só ao bem da comunidade".
Abertas ou sutis, as experiências autoritárias e repressivas estão presentes também nas artes. Na literatura, é notório o pesadelo distópico do livro 1984, de Geoge Orwell, pseudônimo do autor George Arthur Blair. Publicado em 1949, o romance estava sem sintonia com as preocupações pós Segunda Guerra Mundial, mas foi "profético". O "Big Brother" orwelliano terminou apropriado e carnavalizado pela televisão em programas como o reality show homônimo da produtora holandesa Endemol, realizado no Brasil pela Rede Globo. Eis o sistema para um diagnóstico foucautiano: a vigilância tornou-se um espetáculo. Nos acostumamos ao panóptico. O que Guy Debord pensaria das nossas "inocentes "espiadinhas"?
STASILÂNDIA
É especialmente asfixiante viver em sociedades repressivas, com polícia secreta e política ativas e sanguinárias. Foi assim na Alemanha nazista com a Gestapo, na União Soviética, na Romênia de Ceaucescu e sua Securitate e nas ditaduras da América Latina. No livro-repotagem Stasilândia - como funcionava a polícia secreta alemã (Companhia das Letras, 2008, p. 376), a jornalista australiana Anna Funder investiga o estado polícial da República Democrática Alemã (RDA), pertencente ao bloco socialista e exemplo dramático de opressão. Título da coleção "Jornalismo Literário", Stasilândia está na mesma prateleira dos livros Fama & Anonimato (Gay Talese), A Sangue Frio (Truman Capote) e Hiroshima (Jonh Heshey), a bela tríade de livros do new journalism*. e a obra de Funder faz boa figura na lista ao privilegiar as narrativas, seja de vítimas ou algozes (se é que podemos dividir assim, sem controvérsias), daqueles que conheceram os longos tentáculos do" escudo e da espada do Partido Comunista", a Stasi, a feroz polícia secreta da RDA fundada em 1950. Escreve a jornalista que "A Stasi era o exército interno por meio do qual o governo mantinha o controle. sua missão era saber tudo sobre todos, valendo-se dos meios que quisesse".
Embora os alemães façam um esforço admirável de reconstituição histórica, milheres de documentos foram destruídos desesperadamente por agentes da Stasi no contexto da queda do Muro de Berlim. Máquinas de triturar papéis funcionavam até explodirem. Portanto para privilegiar os relatos da memória oral, Anna Funder mostra a dimensão emocional que não fora captada pela frieza dos registros e fichas recuperados. a robusta burocracia da RDA espionava seres humanos com sentimentos conflitantes, que temiam a repressão estatal mas tinham fé no modelo proposto pelo Partido Comunista, que sonhavam com as delícias do Ocidente, mas eram - e alguns continuam a ser - paradoxalmente hostis a certos valores pregados pelo capitalismo.
*New Journalism (Novo Jornalismo) surgiu no final dos anos 60 com o intuito de valorizar a narrativa jornalística valendo-se de recursos literários - um jornalismo literário, por assim dizer. Os principais nomes do gênero: Norman Mailer, Truman Capote, Gay Talese e Tom Wolfe, entre outros
O aparato da Stasi não seria viável sem o auxílio de espiões voluntários ou coagidos. Eles se juntavam aos oficiais comandados pelo ministro Erich MIelke*, em um exército correspondente, no seu auge, a um agente/voluntário para cada 63 habitantes. além das garras da polícia, as rádios e TV estatais difundiam uma visão gloriosa e triunfalista da RDA. Anna Funder entrevistou um desses propagandistas, o jornalista K.E Von Schnitzler, apresentador de Der Schwarze Kanal. No capítulo dedicado a Von Schni, Funder recorda que na época da conversa - década de 1990 - a TV alemã exibia a versão local do Big Brother. ela ficou a imaginar, com a ironia divertida característica da sua prosa, "Se herr Von Schnitzler se ofendeu com os ecos orwellianos do programa ou apenas com a imbecilidade generalizada que nele impera".
Anna Funder mergulha em sua pesquisa durante a crise no processo de reunificação da Alemanha - e ainda são abissais as discrepâncias entre "ocidente e oriente". Moradora do trecho oriental, a jornalista encontrou prédios sisudos e "palácios de linóleo" da época comunista e seu olhar peca pela visão negativa e preconcebida daquele mundo em ruínas. Em instante algum ela faz um esforço de reflexão crítica acerca da sociedade de controle, não cogita a hipótese de ela vigorar no ambiente democrático e trata tudo em termos dicotômicos, com vantagem evidente para o bloco capitalista. No entanto, essa apenas é uma ressalva que não pretende apagar a crueldade do estado alemão oriental. A indignação e o horror são constatados nos episódios de perseguição, interrogatório, tortura e paranóia coletiva de Stasilândia. Ao folhear o livro e assistir ao filme A Vida dos Outros de Florian Henckel Von Donnersmark (2006), obtemos informações suficientes para não querer ter padecido naquele inferno.
Erich Mielke - Ministro para a Segurança do Estado da República Democrática da Alemanha (RDA), Érich Mielke (1907-2000) foi por quatro décadas o responsável pelo aparato de vigilância da política alemã oriental.
O painel humano da Stasilândia, com seus traumas e rancores, nos alerta para o terror totalitário* embora, nas suas lacunas discursivas, renegue as opressões veladas do cotidiano aparentemente tranquilo da democracia liberal. Serviços secretos, sistemas de vigilância e códigos disciplinares vigoram em todas as sociedades. E a história nos conta que o apelo à repressão pode estar sorrateiramente ao nosso lado. "As ideologias são liberdades enquanto se fazem, opressão quando são feitas", dizia Sartre. Sendo assim, é preciso estar atento para driblar as armadilhas autoritárias no caminho da história.
Totalitário: O termo totalitarismo - fora inicialmente elaborado para entender o fenômeno dos regimes autoritários de direita, como o fascismo de Benito Mussolini, mas serve também para designar governos vinculados à esquerda, como a União Soviética sob a direção de Josef Stalin. um ótimo livro sobre o tema é As Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt. É preciso lembrar ainda, que cientistas políticos e historiadores fazem uma distinção entre autoritarismo e totalitarismo.
Fonte: Conhecimento Prático Filosofia no 34
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