Por Mauro Ventura
Muita gente estranhou que Xuxa tenha levado 49 anos para contar que foi vítima de abuso sexual na infância. Mas não a psicanalista Graça Pizá, que há 32 anos trata do tema. "A pessoa tem que se refazer toda por dentro. Às vezes demora uma vida", diz ela, que começou atendendo na Funabem. Lá descobriu que as meninas buscavam a porta da rua porque sofriam violência sexual em casa. Sua tese de mestrado, "Círculo do horror", mostrou que os abusos se estendiam aos hospitais. A partir daí criou em 1996 a Clínica Psicanalítica da Violência (Cliviol), que atendeu mais de 15 mil crianças - hoje ela funciona de modo virtual: cliviol@uol.com.br
.
Em 2004, Graça lançou, com Gabriela Ferrarese Barbosa, o livro "Violência silenciosa do incesto", em que, a partir de desenhos infantis, criou 43 conceitos - termos que revelam o que a criança vítima de incesto está sentindo, como "afetos emparedados", referência à sensação de enclausuramento que a atinge. Depois Graça lançou, em parceria com a fundação Childhood, da Rainha Sílvia , da Suécia, o média-metragem "afetosecretos" - o filme" e o livro "afetosecretos - o vocabulário", trabalhos pioneiros que trazem 110 conceitos inspirados em sonhos.
REVISTA O GLOBO. Como se sentem as crianças vítimas de violência sexual doméstica?
GRAÇA PIZÁ: Elas vivem a mesma situação de angústia, de cativeiro, de aprisionamento e de isolamento das pessoas sequestradas e dos presos políticos. Não sabem quando o torturador vai chegar. ficam tomadas por isso 24 horas por dia, estão sempre na expectativa.
Por que é tão difícil enfrentar o problema?
É uma violência que ninguém quer ver. A primeira reação da sociedade, do estado e da família é dizer: "É mentira, fantasia, invenção.". Há uma recusa da realidade. O incesto é da ordem do insuportável. É a morte do amor. E a criança se cala porque sabe que não está sendo ouvida. E tem a vergonha, a culpa, o medo, as ameaças ("Fala que eu corto sua língua", "Se falar mato sua mãe", "Mato seu cachorro"). Se ela não tiver a chance de ser acolhida num espaço de escuta e tratamento onde possa ser ouvida e suas palavras tenham valor, pode cair na depressão, na droga, na prostituição, no suicídio.
Como melhorar esse quadro?
Os especialistas têm de estar preparados para ouvir a criança. É um crime quase perfeito, mas sempre escapa algo num desenho, numa redação, num sonho, num ato falho. Ao começar o tratamento, é muito difícil a criança dizer: "Odeio meu pai, ele mexe no meu bibiu". Mas ela dá sinais. Fala por neologismos, criando palavras. Uma me perguntou: "A senhora acha que eu sou nenezuda?". Juntou neném com popozuda, boazuda. Fala por imagens. Uma de 10 anos desenho "A mão invisível" que sobrevoava a casa, entrava no quarto à noite e invadia as cobertas. Ganhou prêmio na escola. Mas a criança era violentada pelo padrasto, que ia ao quarto com a desculpa de desligar o ventilador. Outra menina criou uma história para cada dedo. O indicador tinha o nome do padrasto.
Você fez um filme e um livro pioneiros sobre o tema...
É um mapeamento do que sentem essas vítimas e o que as faz escapar do sofrimento. Mostro como entram e saem do trauma, e como fazem a travessia. Por dez anos mapeei mais de 800 sonhos de crianças vítimas de violência. O filme mostra uma mulher adulta, fictícia, que rememora em 22 sonhos os abusos. a idéia veio quando uma menina de 7 anos viu no meu consultório aquela bola de vidro que você vira e simula cair neve dentro. Ficou fascinada. Olhou a Bela Adormecida no interior e disse: "Sou eu. É assim que me sinto, presa, minha casa parece uma grande bolha, vejo tudo mas não posso sair". Dois dias depois, teve um sonho em que esteve dormindo meio morta, numa bolha.
Como alguém consegue fazer essa travessia?
Pode ser por meio de uma análise, de uma relação amorosa, de uma pressão muito grande na vida adulta, como casamento ou maternidade. Pode ser que chegou a uma situação de visibilidade em que sua voz tem valor de verdade. Ou porque encontrou alguém que disse: o que você sofreu não era amor, era crime". Muitos esperam que o abusador morra, adoeça ou desapareça para contar. Quando a pessoa fala, é um divisor de águas, é como se encontrasse a chave da cela. É muito bom a Xuxa ter falado. Ela saiu desse aprisionamento e agora vai poder ajudar muito mais as crianças.
Fonte: Jornal O Globo - Revista (p. 10, 25/05)
Comentários
Postar um comentário