Martha Moreira
martha.moreira@oglobo.com.br
Jornal O Globo - Caderno Razão Social
- Pôxa esquecemos o espelho. E agora?
- Sem problemas! Eu pinto a sua cara e você pinta a minha cara!
O diálogo lúdico aconteceu onde menos se espera: na antesala da enfermaria pediátrica do Hospital Municipal Alcides Carneiro, em Correias, Região Serrana do Rio.Há duas semanas, Giullia Bortollino e Lais Santana foram até lá dar plantão... de alergia, como elas fazem questão de explicar. Aos 22 anos, elas são estudantes do segundo ano da Faculdade de Medicina de Petrópolis e, no intervalo da rotina pesada de estudos, pegam as caixas de adereços, os jalecos brancos e se vestem de palhaças para alegrar as crianças internadas.
Não são as únicas alunas do sisudo curso universitário a aderirem à prática. Só na faculdade que estudam, já são 109 alunos-palhaços. Juntos, eles formam Plantonistas da Alegria, que duas vezes por semana fazem atendimento aos pequenos pacientes do hospital-escola. Em todo o país já são mais de 270 grupos similares formados por alunos de área de saúde, demonstrando que os futuros profissionais são preocupados em tornar mais humano o atendimento em hospitais e clínicas
Morgana Mazzetti, psicóloga especialista no tema que há 22 anos trabalha com os Doutores da Alegria, participou no ano passado do segundo encontro nacional desses grupos de estudantes em São Paulo. Ela acredita que está em curso uma mudança de paradigma de atendimento na área de saúde, até então baseada em um modelo militar de atendimento focado apenas na doença.
-São jovens que olham para seus preceptores no curso de medicina e não o reconhecem. Por isso querem fazer diferente, promovendo encontros para discutirem um atendimento mais humanizado no hospital e partindo para a prática ao formarem os grupos de humanização - contou Morgana, que já dá aulas, junto com a equipe dos Doutores, para grupos de escolas de medicina da Universidade de São Paulo. (USP).
Foi exatamente o que aconteceu com Giullia e Lais.
- Após uma aula de saúde coletiva, cujo tema era atendimento ao paciente e o desgaste médico, ficamos assustadas com as doenças associadas à rotina pesada do profissional de saúde. Resolvemos começar a fazer este trabalho não só como uma forma de melhorar o atendimento ao paciente , mas também para nos ajudar a relaxar da rotina difícil de estudos - contou Lais, que fundou o grupo em 2010 com apoio da universidade e da direção do hospital.
A criação de grupos de humanização como o de Lais é recente. Vem no rastro da Política Nacional de Humanização. Implantada em 2004 pelo governo federal na rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Pela política, todos os hospitais da rede devem desenvolver ações desde a capacitação de profissionais, distribuição de cartilhas sobre o tema até, o desenvolvimento de projetos de atenção ao paciente, passando pela remodelação dos espaços dentro do hospital.
Na prática segundo Gustavo Nunes de Oliveira, coordenador nacional da política do Ministério da Saúde, embora já tenha sido lançada há mais de oito anos, ainda é um desafio a difusão das diretrizes nas seis mil unidades hospitalares da rede SUS. Por isso, todos os anos, o Ministério promove a capacitação de apoiadores, profissionais das unidades hospitalares trinadas para criar grupos de humanização. Este ano 430 pessoas estão participando do treinamento, em seis estados. Em 2011, foram capacitados 340. Além disso, o Ministério criou uma rede virtual de troca de informações entre os hospitais que já conta com 4 mil pessoas cadastradas
Segundo Nunes, a política é para consolidar o direito à saúde, o que quer dizer, apostar na produção de saúde e não apenas no combate à doença. Para tanto tem R$6,5 milhões anuais.
- Isso esbarra na relação mais humana entre médico e paciente e também na relação mais humana e respeitosa entre os profissionais de uma mesma equipe nos hospitais. É dificílimo encontrar uma equipe multiprofissional em hospitais em que se entenda perfeitamente. O modo de organizar o serviço hospitalar induz uma forma de contato dura entre as pessoas - contou Gustavo, que tem uma meta ousada: fomentar a criação de fóruns regionais de discussão sobre a qualidade de atendimento dos hospitais - Seriam com conselhos gestores formados pela população atendida e profissionais de saúde. Há em vários países e ajuda a criar soluções para os desafios do atendimento de saúde nos hospitais.
No Rio de Janeiro, o Hospital Federal de Bonsucesso (HFB) já conta com um grupo de humanização. São 13 profissionais que implantaram projetos de criação de brinquedotecas em enfermarias pediátricas, aumento de horários de vistas dos filhos paras as mães internadas, suporte psicológico para pacientes em estado grave e seus familiares, aula de artesanato para pacientes, apresentação de seresteiros nas enfermarias.
Há dois meses internada por causa de uma doença crônica que causa infecções e dores nas articulações, Eliana Justino de Souza, de 32 anos, já participou de aulas de artesanato e se diverte com as serenatas.
- Fico meses internada aqui. Tenho dores muito fortes por causa das infecções e poder fazer atividades é importante para que eu consiga suportar melhor o tempo fora de casa - contou Eliana, que já conseguiu ter uma renda quando saiu do hospital vendendo panos de prato que aprendeu a fazer nas aulas de artesanato - Vendo nas feiras e ganho um dinheirinho que dá para comprar umas frutas para o meu filho.
Toda semana ela recebe palavras cruzadas gratuitamente e é beneficiada com uma visita ampliada - mais 20 minutos por dia - para o filho.
Segundo o diretor adjunto do HFB Moysés Rechtman, o grupo de humanização existe desde de 2005 e tem o desafio, hoje de sensibilizar os profissionais para a necessidade de ter um contato mais consciente com os pacientes. Isso quer dizer não enxergá-los como uma doença, mas ouvir suas necessidades e, na medida do possível, tentar atendê-las.
- Sensibilizar os profissionais de saúde é o grande desafio. Já temos uma série de projetos que tornam a permanência do hospital mais suportável, mas é preciso agora, olhar para a sutileza da relação médico-paciente - acredita Rechtman.
Para Morgana Mazetti, no padrão vigente de relação médico-paciente, não cabe considerar o que não se enquadra no saber que está na literatura médica. Ela explica que o médico precisa ter uma hipótese diagnóstica, baseada naquilo que viu nos livros. As questões psicológicas, que passam por aspectos não ditos, como, por exemplo, pela linguagem do corpo, ficam de lado.
- Nos hospitais com mais recursos tecnológicos, os profissionais, muitas vezes, nem veem o paciente - disse.
Há 30 anos atuando como obstetra e ginecologista, Luiz Zamagna, 57 anos e coordenador do Centro de Atenção à Mulheres Crianças e Adolescentes do HFB, admite que o desafio é grande.
-Não somos formados para termos um contato mais próximo com o paciente, até porque temos que nos proteger de tantas situações difíceis enfrentadas na rotina. Mas acho que é necessário mudar este padrão. O paciente ganha ao ter uma recuperação melhor e, assim, o médico também - acredita Zamagna.
Há mais de 20 anos trabalhando com os Doutores da Alegria, Morgana Mazetti aposta na relação mais sutil entre pacientes e profissionais de saúde, sobretudo na escuta atenta entre eles, para mudar o atual paradigma de combate à doença para promoção da saúde coletiva. Para defender seu ponto de vista, baseia-se em resultados de uma pesquisa feita de 2007 a 2009 com 567 profissionais de saúde em 13 hospitais onde o grupo de atore-palhaços atuam no país. O estudo teve o objetivo de avaliar o trabalho das duplas de palhaços em oito indicadores, entre eles relação dos profissionais de saúde com as crianças, das crianças com o tratamento médico, relação dos profissionais de saúde com equipe de trabalho e relação de profissionais de saúde entre eles.
Descobriu-se que, para 96% dos profissionais ouvidos, as crianças ficam mais à vontade no ambiente hospitalar a partir da visitas dos Doutores da Alegria; 95% acham que elas ficam mais ativas; 89% falaram que os pequenos pacientes ficam mais colaborativos com os procedimentos médicos; e 77% disseram que elas se alimentam melhor depois de brincarem com os palhaços.
Os dados surpreendem quando mostram que 83% dos profissionais ouvidos admitiram que ficaram mais calmos com a rotina de trabalho, a partir da atuação dos Doutores; 71,6% disseram que passaram a brincar mais com as crianças; 75% passaram a buscar novas formas de aproximação com as crianças e 69% passaram a conversar mais com os pacientes pediátricos. Um outro dado relevante mostra que 49,5% dos profissionais entrevistados reconheceram que a equipe de trabalho ficou mais coesa após o contato após o contato com os Doutores e 48% concordaram que conseguiram, a partir daí, abrir espaço para falar de questões delicadas com seus colegas de trabalho.
- Os benefícios são indiscutíveis por isso que é um ganho ter uma política de humanização no país. Daqui a alguns anos talvez tenhamos que aferir os resultados-disse Morgana.
É verdade. Desde fevereiro o Humaniza SUS, como foi batizada a política, conta com uma ferramenta chamada Carta SUS. Trata-se de um questionário que o paciente após a internação, deve responder. A ideia é avaliar a qualidade do atendimento, mas ainda não há resultados preliminares.
MODELO DE ORGANIZAÇÃO MILITAR INSPIROU CRIAÇÃO DE PRIMEIROS HOSPITAIS NA IDADE MÉDIA
Há dois fatores que contribuem para que as relações entre profissionais de saúde e entre eles e seus pacientes sejam tão distantes nos hospitais. Morgana Mozetti, especialista em psicologia hospitalar, destrinchou as duas no artigo "A força dos encontros", publicado no livro "Ética na Alegria", disponível para a compra via internet (www.lojassingular.com.br).
O primeiro deles tem a ver com visão aristotélica de saúde, que fundamenta a concepção moderna do trabalho médico. Segundo Morgana, para o filósofo grego o corpo saudável e equilibrado era aquele governado pela razão. Desta forma, os excessos, entre eles emoções como alegria, não eram indícios de saúde. O segundo fator explica-se pela própria origem histórica do hospital. Os espaços de cura para os enfermos nasceram favorecidos pelas guerras. Eram as tendas para os mutilados e enfermos, conhecidas hoje como hospitais de campanha, ou os conventos próximos das cidades; para onde eram levados os doentes. No texto Morgana informa que entre os séculos XI e XVI, após grandes epidemias e pestes na Europa, os conventos, especialmente os beneditinos, passavam a receber mendigos, portadores de moléstias e imigrantes doentes.
Com o tempo foi preciso organizar o atendimento, estabelecendo normas de controle ambiental e higiene, além de procedimentos a serem cumpridos à risca para a melhoria dos pacientes. Neste contexto é que nascem, já no ´seculo XVIII, as escolas de medicina.
Na mesma época, a doença passou a ser considerada um fenômeno botânico, ou seja natural, que dependia, para ser curada do controle de certas ações da natureza sobre o homem (água, ar e alimentação). Isso, segundo explica Morgana, levou o médico para dentro do hospital como a figura responsável pela organização do espaço de cuidar. Nasce aí o hospital que conhecemos.
Trata-se, segundo descreve Morgana, de instituição onde a disciplina, inspirada em um modelo militar, assume uma função terapêutica importante. Neste contexto, o paciente tem um papel passivo, respondendo apenas às regras previstas para sua recuperação.
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