Por Daniel Galera
[1] Nunca me reproduzi, mas alguns de meus melhores amigos fizeram, de modo que sou padrinho de dois piás e uma menina. Recentemente fui comprar um tênis de presente para a mocinha, que ia fazer três anos. Queria um par de cor azul ou amarela, mas cometi o erro de mencionar de mencionar o sexo da criança para o atendente, que me mostrou uma dúzia de modelos cor-de-rosa ou com estampa de onça ou zebra. Escolhi um All- Star vermelho e ele me preveniu: esse é de menino. Perguntei se encaixava em pé de menina também. Ele disse que sim e mandei embrulhar. Tempos atrás meu afilhado mais velho, que adora desenhar e tem sensibilidade e memória incomum para cores, foi informado por uma professora da escolinha que sua cor favorita, o rosa, não era cor de menino. Agora ele tem outra cor favorita.
[2]Meses atrás a revista novaiorquina "n+1" publicou um ensaio intitulado " O que você deseja?" - http://nplusoemag.com/what-do-you-desire). A autora Emily Witt, viajou a São Francisco para acompanhar as filmagens de um vídeo pornográfico da série "Public Disgrace", cujo nicho é o do sexo hardcore com mulheres amarradas e castigadas em público. Para além das descrições minuciosas e pitorescas dos bastidores de uma produção do gênero o ensaio traz reflexões interessantes sobre os hábitos e ideologias do "povo do Google", uma jovem geração radicalmente a favor da expressão individual e contra todo tipo de norma de conduta, defensora do poliamor psicodélico e enfeitiçada pelos profetas da singularidade, mas ao mesmo tempo curiosamente alheia ao narcisismo e à alienação que andam de mãos dadas com a hiperconectividade e à ética por vezes confusa que vem atrelada ao consumo desenfreado das novas tecnologias digitais. Uma geração que, de acordo com Witt, "se esbalda, com um senso equivocado de agência política, em delícias de consumo produzidas por uma desigualdade jamais vista." Witt também faz um contraponto lúcido entre o universo da pornografia extrema e suas próprias experiências afetivas e sexuais. O sexo nos vídeos amplia as possibilidades mas também as expectativas. "Agora a liberdade sexual alcançou pessoas que nunca quiseram abandonar as velhas instituições, a não ser para prestar solidariedade aos amigos que queriam. Nunca busquei ter muitas escolhas, e no período em que a liberdade sexual foi munha única possibilidade, fui infeliz." O tema abre questões difíceis. Cada um deve fazer o que bem entender de sua sexualidade. Mas é aceitável, do ponto de vista ético, explorar comercialmente os anseios trazidos por essa nova liberdade? Existe algum limite - nos âmbitos privado, publico, comercial - para o racismo, a misoginia ou a brutalidade praticada mediante consenso inequívoco de todos os envolvidos?
[3] A medida que a liberdade individual e o respeito às diferenças se tornam valores cada vez mais presentes em nossa vida privada, social e política, precisamos prestar atenção ao tipo de ideologia que esta liberdade está ensejando. Esta é também uma questão pedagógica. A normatividade excessiva no ambiente educacional e familiar pode ser opressora, o que é evidente quando as normas reforçam comportamentos como a violência e o machismo (algumas normas de conduta são inócuas e podem até ser benéficas - precisamos de balizas, nichos de pertencimento). A cor favorita de um pirralho é o tipo de coisa em que já tínhamos que ter aprendido a não intervir. Mas tenho dúvidas sobre até que ponto impôr a ideologia do "seja o que bem entender/ não existem padrões" pode melhorar a vida das crianças e das pessoas em geral. Para isso também existe um limite que, se ultrapassado, pode provocar sofrimentos e pressões injustas. Todo mundo vai sofrer um pouco ou sempre, em todos os tempos e lugares, por causa do que é. O crucial me parece ser outra coisa: a nossa relação com esse sofrimento. Sendo compartilhado por todos, ele é a chave para reconhecer, compreender e aceitar os outros. Liberdade e direitos não garantem felicidade e realização pessoal.
O preço de não entender isso é a vitimização. A liberdade para ser o que quiser não pode vir acompanhada da filosofia do "eu mereço", do "eu tenho direito", do "eu posso". Tampouco podemos podemos confundir liberdade e respeito por uma pressão social por ser autêntico, diferente múltiplo, independente, aberto a tudo sempre, livre sem descanso. É muito fácil que as coisas descambem para um ou outro autoritarismo existencial, do mesmo tipo que em gerações recentes, carregados em lemas como "você quer, você pode" e o "mundo está à sua espera", produziu legiões de narcisistas incapazes de se comprometer com nada, crentes de que têm direito a tudo e que qualquer manchinha naquilo que entendem como liberdade é uma opressão injusta e pessoal algo que alguém, em algum lugar, deveria estar resolvendo.
fonte: O globo
fonte: O globo