Na estufa (Manet)
Jonathan Crary
Por Maria Cristina Franco Ferraz
Fonte: Caderno Prosa - O Globo
Parte expressiva da obra do teórico da arte moderna Jonathan Crary encontra-se enfim disponível em português. Excelente notícia para os interessados em dimensionar criticamente o que estamos atualmente nos tornando, no que diz respeito às alterações dos modos de perceber em tempos de dispersão hiperconectada nas sociedades liberais avançadas. Escapando da crença de que a fragmentação da atenção, a descentralização do sujeito e a perda de referências são fenômenos contemporâneos, é necessário retornar ao instigante seculo XIX e estudar os momentos em que os processos de "industrialização dos regimes de contemplação" (expressão de Crary) ainda provocavam espanto, perplexidade e mais resistência do que em nossa época, quando muito desses fenômenos foram literalmente incorporados e naturalizados.
Tal é o gesto de Crary: investigar perspectivas e mudanças em curso no seculo XIX a fim de historicizar regimes perceptivos e o estatuto do observador no âmbito do processo de modernização implementando desde as primeiras décadas do século XIX. A publicação de 2012, de "Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX", pela Contraponto, na coleção Arte-Físsil (dirigida por Tadeu Capistrano, introdutor de Crary nos estudos em Comunicação), é agora coroada pela edição do mais denso livro do autor, na esteira temática e metodológica da obra citada, "Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna" (Cosac Naif).
CAPITALISMO E ATENÇÃO
Ressalte-se a bem sucedida abordagem metodológica desenvolvida por Crary em ambos os livros, remetidas a genealogia proposta por Nietzsche¹ e desdobrada por Foulcault². Tal perspectiva permite evitar ciladas inerentes a historicizações lineares e teleológicas³, que tendem a desembocar em determinismos tecnológicos, como por exemplo, no estabelecimento de uma linha "evolutiva" direta entre a câmera escura e a fotografia. Como defende Crary, a cada um desses dispositivos tecnológicos correspondeu um tipo de observador diferentes, regido por regimes ópticos e cognitivos radicalmente diversos.
Postulam-se, portanto, rupturas. Conforme o autor salienta, é a visada teórica que as constrói, já que a Historia é sempre complexa, atravessada por temporalidades múltiplas e superpostas. Isso não quer dizer que tais rupturas projetadas ou nietzschianamente ("inventadas"4.) pelo olhar do estudioso sejam arbitrárias, uma vez que emergem de uma ampla investigação, tanto mais rigorosa quanto mais assume sua condição perspectivística. Construída pela visada teórica, a aponta em rupturas históricas tem efeitos reais nos planos intelectual, filosófico e político, sugerindo questões ainda não pensadas.
O estudo genealógico possibilita se esquivar igualmente de simplificações, como por exemplo, a busca por "causas" nomeáveis, apaziguadoras da inquietação ante a complexidade efetiva das transformações históricos-culturais. a tarefa requer a amplitude do espectro das pesquisas, capaz de pôr em diálogo expressões desses processos em campos distintos - nas artes, ciências empíricas, tecnologias, filosofia -, mas "historicamente adjacentes". Quando não se trata de desvendar causas das transformações dos regimes ópticos e dos modos de organizar o conhecimento, resta o gesto de "mapear", de "cartografar" mudanças em curso, a partir da análise investigativa de variados efeitos de superfície colocados em paralelo.
No livro 'Técnicas do observador", Jonathan Crary privilegiou as décadas iniciais do século XIX, mapeando de modo arguto mudanças cruciais no estatuto do observador moderno, da "Teoria (doutrina) das cores de (Goethe 5.), ás ciências empíricas então nascentes em especial a fisiologia óptica. Mostra como as flutuações dos regimes de atenção eram suscitadas e requeridas pelo capitalismo industrial em desenvolvimento, vinculado à urbanização crescente e a invenção dos novos meios de transporte e comunicação. Crary define então dois modelos contrapostos: o modelo perceptivo da câmera escura, com seu observador externo e uma relação não problemática com o mundo aprendido com base em garantidoras leis da física newtoniana; e o modelo do estereoscópio, relativo à entrada em cena do corpo (sempre contingente, variável) na fabricação de imagens, o que teve por efeito desestabilizar certezas na ordem do perceber/conhecer. O privilégio atribuído à estereoscopia resulta do entrelaçamento entre pesquisas científicas sobre percepção, a síntese de imagens (em seres como nós, dotados de dois olhos, com ângulos diversos de visão) e o campo em expansão do entretenimento e do espetáculo, com seus novos dispositivos saídos de experimentações laboratoriais (taumatrópio, estereoscópio e fotografia).
5. Doutrina das cores de Goethe - (...) Em 17 de maio de 1798, Goethe pegou emprestado um prisma, a fim de observar a passagem da luz e sua projeção sobre uma parede branca recém-pintada, na expectativa de ver o facho se decompor em todas as cores do arco-íris. Isso era o que prometia a teoria de Isaac Newton, acatada por todos na época; segundo o cientista inglês, a luz do sol poderia ser decomposta em diferentes cores constituintes.
Cores e a percepção humana - Uma outra parte das investigações de Goethe consiste de observações informais sobre o efeito das diferentes cores sobre seres humanos. Goethe se refere ao "efeito sensorial-moral das cores". Nesse ponto, ele também se distingue claramente de Newton, cuja propagada concepção das cores limitava tais qualidades ao âmbito meramente subjetivo. Já o pesquisador e escritor alemão priorizou a percepção humana em suas investigações (fonte:http://www.dw.de/teoria-das-cores-de-goethe-completa-200-anos/a-5942436).
Em "Suspensões da percepção", a ênfase recai sobre as três últimas décadas do século XIX, momento em que a experiência das flutuações da atenção (tanto produzidas quanto temidas) ameaçava a integridade da vida subjetiva. Assim como a aceleração do processo de industrialização, da vida urbana e desenvolvimentos tecnológicos articulados aos avanços da capitalismo distendiam e modulavam a atenção, tinha-se que controlá-la e dar conta de crises disruptivas no âmbito da subjetividade. eis um dos paradoxos da vida moderna, pautada por premissas capitalísticas: dilatar a atenção, torná-la flutuante e modulada e, ao mesmo tempo, disciplinar, controlar seus fluxos, adequando-os ao trabalho de base industrial e capturando-os, enredando-os na lógica da mercadoria e do consumo. entra em cena uma verdadeira política da atenção.
OBRAS DE ARTE COMO PONTO DE PARTIDA
Integram o livro três capítulos centrais, precedidos por uma densa introdução teórica acerca da problemática moderna da atenção. Tais capítulos giram em torno de datas e produções pictóricas precisas. O primeiro deles referido a 1879, remete à pintura de Edouard Manet, tendo como pontos de partida os quadros "O balcão" e na "Na estufa". O capítulo seguinte centra-se em 1888, privilegiando a obra de Seurat sobretudo "Parada de circo". Por fim, 1900, com ênfase em Cézanne e na problemática da síntese perceptiva. O tema da síntese perceptiva é de fato crucial. Se a percepção deixou de ser ancorada nas certezas fornecidas pela física newtoniana, com suas leis de reflexão e refração da luz; se o corpo se tornou parte indispensável da produção de imagens, a coesão do mundo passou a ser radicalmente abalada. Este "mundo" é construído pelo olhar corporificado dos homens, seres dotados de binocularidade e de capacidade de apreenderem uma imagem sintética. Mais uma vez, quando o corpo passa a participar da produção de imagens perceptivas, a contingência, alterações de seus estados ameaçam tanto a coesão do mundo quanto a coerência do eu.
"Suspensão da percepção" é um livro essencial para vérios campos de investigação. só podemos portanto nos alegrar com este lançamento da Cosac Niaf, em cuidados edição acrescida de elucidativo prefácio de Stella Senra, embora sem dúvida visando ao barateamento do livro, desprovidas das ilustrações que enriquecem a versão original.
Maria Cristina Franco Ferraz é professora Titular da ECO/UFRJ, Dra. em Filosofia pela Sorbonne, e autora, dentro outros, de Homo deletabilis:corpo, percepção, esquecimento, do séc XIX ao XXI.
obs: A ideia do glossário foi de minha iniciativa. Pesquisa internet.
1. Nietzsche sugestão pesquisa: http://pensador.uol.com.br/autor/friedrich_nietzsche/biografia/
2. Michel Foucault sugestão pesquisa:
http://pt.scribd.com/doc/54063475/Resumo-Sobre-Michel-Foucault
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