As contradições do corpo
Carlos Drummond de Andrade
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser,
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assutar,
toornou-se meu carcereiro
me sabe mais que me sei.
Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha da minha mente,
Inocula-me seu patos
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos
Seu ardil mais diabólico
está em me fazer doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão
Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do emu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se
Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.
Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo
É ele, por mim, repace
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.
Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
da sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto
Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo caminho oposto.
Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor
Não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
volto a bailar com meu corpo.
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