Quis ilustrar estes escritos com este antigo samba, que foi enredo no carnaval de 1984 da Unidos de Vila Isabel, de autoria do maravilhoso e sempre inspirado Martinho da Vila. Ótimo ter encontrado legendado, porque é uma letra linda. Na verdade, o que trago são reflexões fruto do que observei ao longo dos anos. Não tenho a pretensão de esgotar um tema tão complexo. Para quem não é da folia, como eu, faço apenas um convite a um novo olhar sobre esta manifestação popular e para quem é da folia, divirta-se sem excessos! Bom Carnaval!
O carnaval se transformou numa indústria que move milhões, uma grande máquina que tornou os criadores da festa em meros coadjuvantes, embora queira soar como a consagração do protagonismo popular. Muita coisa se perdeu.
O que me atrai no carnaval é o que está envolvido na sua preparação, é a quadra vazia onde as pessoas do lugar se encontram, os saberes ancestrais são transmitidos de pai para filho - a porta bandeira, a passista, a baiana, a bordadeira, o ritimista, o compositor da velha guarda, as reuniões, os sambas feitos no improviso que surgem destes encontros, a comida, a religiosidade por trás disso tudo...
Quantos artistas iluminados como Cartola, Candeia e tantos outros trabalhando em atividades humildes, com pouca instrução, educados pela vida rude, foram capazes de poesias inesquecíveis, canções imortais.
O Grêmio Recreativo Escola de Samba (G.R.E.S) é fundamentalmente um centro comunitário resultado da aglutinação de um grupo. É uma instituição extensão da familiar também de transmissão de valores.É possível observar isso fora do carnaval - a quadra como espaço de lazer, de troca e de educação.
Não tenho nenhuma ligação com o carnaval, nunca saí numa escola de samba, mas fui a uns poucos eventos e pude observar que existe nestas agremiações uma vida comunitária muito rica que nas transmissões da mídia não é enfocada. Há tempos atrás, nestas transmissões, todo mundo achou muito chato quando uma cantora que conhecia bem esse universo, convidada a ser comentarista fazia referência em seus comentários à "pessoas da comunidade" que contribuíram ou contribuem na história da festa.
Não acompanho as transmissões porque, na minha opinião, o enfoque dado é o dos patrocinadores, os comentários dão muito mais ênfase às celebridades que desfilam e mesmo os comentaristas com conhecimento, o superficial é o que acaba predominando.
Podem me chamar de purista, mas o que me emociona são as pessoas anônimas do lugar, que vivem o cotidiano da quadra vazia com a família, são os mais velhos, os filhos que se tornaram ritmistas porque viram seus pais tocando, são as baianas e sua fé, as tradições que são transmitidas, as costureiras pregando aquele paetê com amor na alegria de contribuir para esta grande festa, aos que empurram os carros, aos que não são vistos, nem falados. O que me emociona é ouvir um samba histórico como Os Sertões reeditado pela escola Em Cima da Hora no desfile desta última sexta-feira. Chorei...
É nisso que está, ao meu ver, a grande verdade do carnaval e o que de fato me faz respeitar esta festa. Minha reverência a todos estes poetas, artistas de grande inteligência apesar da falta de instrução formal. Essa capacidade do nosso povo de transformar dor em beleza e poesia é o que me encanta no carnaval. Quanta força há nisso!
Regina Bomfim
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