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FALANDO SOBRE A MORTE

FALANDO SOBRE A MORTE

A morte na minha família sempre foi repleta de rituais. Havia também as doenças cujo nome não podia ser falado (câncer). Me lembro de ser avisada a não dizer qual era a doença da minha tia/madrinha. A morte é um tabu e dizer o nome de certas doenças não sei se ainda existe, mas tudo que é relacionado à morte ou a sua possibilidade também ocupa este lugar do "não dito".


Ir ao cemitério na minha família até hoje tem o ritual de chegar em casa deixar os sapatos na parte mais externa da casa (como na área de serviço) e tomar banho, como se deste modo se pudesse "manter a morte  distante". Na minha infância nunca fui impedida de ir ao cemitério e saber da morte de familiares como sei haver famílias em que as crianças nem chegam perto de quem está doente, não vão a cemitério e o silêncio é total ou são dadas "desculpas" do tipo fulana (o) foi fazer uma longa viagem. Tem gente que se sente muito mal em ir ao cemitério e eu sempre me senti em paz no cemitério por causa do silêncio. Gosto do silêncio. Sempre foi mais difícil ir ao hospital. Disso, desde sempre, não gosto.
A morte só se torna mais ou menos  aceita quando ocorre com alguém em longo período de sofrimento e em idade avançada. É ainda inconcebível aceitar que filhos possam anteceder aos pais, mas a morte vem. A morte soa para muitos como "o fim da linha", o fim da vida na Terra e a perplexidade que ela causa acaba tornar as coisas do mundo relativas, a morte é capaz de relativizar os nossos sofrimentos, as nossas apreensões e até nossos anseios, porque a morte é democrática, a morte aplaina as estratificações da pirâmide social. A morte relativiza até o dinheiro, o modo como a sociedade é organizada. Nada nos livra da morte, mesmo que o dinheiro nos permita postergá-la pelo acesso ao maior número de recursos. A vida pode ser mantida artificialmente até certo ponto.

Falar da morte é falar também daqueles que tiram a sua própria vida. Uns falam que é coragem, outros covardia. O suicida acha que cortando por sua decisão o fio da vida, ou criando formas indiretas de dar fim à sua existência, vai dar fim a um grande sofrimento ou gerar culpa naqueles que ficaram. Falar da morte é pois, falar da nossa vulnerabilidade. Estamos todo tempo em vida procurando negar nossas vulnerabilidades.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define cuidados paliativos como "assistência promovida por uma equipe multidisciplinar que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença ou agravo que ameace a continuidade da vida, por meio de prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais" (segundo a definição de 2002 revisada e reiterada em 2014).
Existem ramos da medicina e da psicologia que se tornaram especialidades dispostas a discutir e tratar no sentido de dar maior dignidade ao doente e oferecer suporte aos familiares para que a morte seja uma experiência de maior aceitação e serenidade para o doente com medicamentos que o livre das dores e todo acolhimento o mais humano possível para este momento que também acaba por nos igualar a todas as coisas da Natureza.
O que pensar sobre a morte pode trazer para a forma como vivemos nossa vida? Será que ao falar da morte precisamos fazer sempre um paralelo com a vida, para amenizar? Não sei dizer qual a resposta, mas importa a disposição de aceitar, discutir abertamente sobre a morte, tirá-la deste lugar do "não dito" de modo a que um dia ela possa ser vista como um fenômeno natural ou pelo menos falada.
Em Singapura, já se pratica há séculos os "cuidados paliativos". Lá os que se encontram desenganados pela medicina vão junto com os familiares para uma rua chamada "rua da morte" e lá ficam rodeados de carinho (também choram) e quando a pessoa morre, o enterro é festivo com muita música, roupas brilhantes. A cultura deles possui essa visão da morte assim como também ao cumprimentar, os amigos desejam ao outro "que tenha uma morte suave". São questões culturais, cada cultura tem suas características. Não precisamos ser assim.
Começa a chegar no Brasil o Death Café, que desde de 2011 a partir das ideias de um antropólogo suiço, já existe em 65 países. Aqui no Brasil temos o Instituto Rope que realiza sonho de pessoas em estágio terminal.
É um encontro sem fins lucrativos, sem proposta terapêutica (ou grupo de apoio) e roteiro definido, organizado por médicos, psicólogos e psico oncologistas com café e bolo para falar sobre a morte e aberto a pessoas que queiram compartilhar suas experiências intimas.  Há o luto individual e o coletivo. O Death Café está nas redes sociais a quem se interessar.
O modelo foi desenvolvido pelo britânico budista Jon Underwood, baseado nas ideias do sociólogo e antropólogo suíço Bernard Crettaz. Em 2010, Underwood decidiu fazer uma série de projetos sobre a morte. No final daquele ano, ele leu no jornal Independent sobre Crettaz, que reunia pessoas para discutir sobre aspectos relacionados ao fim da vida. Decidiu criar um modelo similar. Assim surgiu o Death Café, assim batizado.
Underwood junto com a mãe, a psicoterapeuta Sue Barsky Reid, produziram uma metodologia com princípios básicos para a realização do Death Café. Esse "guia" foi publicado na internet em fevereiro de 2012, e, a partir daí várias pessoas passaram a procurá-los para instaurar seus próprios "cafés da morte". Virou uma espécie de franquia social: quem inscreve seu evento no site oficial do Death Café pode usar a marca e recebe instruções de como realizar o encontro. Uma das regras é que o Death Café não tenha funcionários. É tudo na base do voluntariado (Revista Época 06.05.2019, p.68).

Regina Bomfim
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